Os media não entendem o Bitcoin

Os media não entendem o Bitcoin

O Bitcoin tem um problema com os media. Ou, talvez, os meios de comunicação têm um problema com o Bitcoin.

Os principais meios de comunicação têm muitas vezes encarado o Bitcoin com o mesmo cariz leviano ou escandaloso, com que publicitam uma ex-estrela infantil problemática ou uma startup tecnológica controversa. A maioria dos jornalistas vê-o como um espectáculo secundário, uma distracção que merece pouca atenção - ou nenhuma no caso nacional - não vá desviar o foco dos avanços históricos do século XXI em tecnologia, negócios e finanças. Por uma combinação de apatia, falta de curiosidade e ignorância, o Bitcoin é muitas vezes desvirtuado ou mal representado nos principais meios de comunicação.

Vamos dar a estes jornalistas, um pouco preguiçosos, algum crédito. Afinal, um tradicional repórter financeiro pode ficar assustado com este novo e confuso mundo da moeda digital descentralizada. E por mais fluentes que sejam no mundo em constante evolução, os repórteres de tecnologia experientes podem, no entanto, ver o Bitcoin como o Leviatã dos tecnicamente obscuros.

O Bitcoin tem, de facto, um esoterismo complexo. Por isso, não é de admirar que apenas quatro anos após a sua criação (quando o Bitcoin começava a entrar formalmente na consciência internacional), Vitalik Buterin opinou no sétimo volume de impressão na revista Bitcoin Magazine que "uma quantidade significativa de desinformação sobre o Bitcoin continua a flutuar pela internet".

Num artigo chamado "Equívocos Comuns Sobre Bitcoin — Um Guia para Jornalistas", Buterin enumerou cinco equívocos predominantes e tentou esclarecer as coisas.

Se uma determinada história é injustamente tendenciosa contra o Bitcoin, ou mesmo injustamente tendenciosa a seu favor, é importante trabalhar em conjunto para garantir que a verdade prevalece — no primeiro caso, para não assustar desnecessariamente potenciais iniciantes no Bitcoin, e no segundo caso, para não desapontar. - Vitalik Buterin

Ao escrever para a edição impressa de Fevereiro de 2013, Buterin admitiu que as coisas tinham melhorado desde os primeiros anos do Bitcoin. Mas ao longo destes sete anos desde o artigo original de Buterin, claramente há ainda um longo caminho a percorrer até pelo menos a literacia elementar sobre Bitcoin se torne predominante nos círculos do jornalismo tradicional.

Não! O Bitcoin não é uma empresa

Digo "elementar" porque, até hoje, alguns dos equívocos mais gritantes sobre o Bitcoin ainda são os mais fáceis de descartar. Seria despropositado esperar que os jornalistas, cuja matéria é tipicamente tudo menos Bitcoin, analise o debate sobre o tamanho dos blocos ou tenham uma compreensão fluente da infraestrutura técnica da Lightning Network (Rede Relâmpago).

Mas depois de 11 anos do lançamento do Bitcoin, é absurdo ver o princípio central da arquitectura da criptomoeda - a sua descentralização - tão descaradamente descaracterizada ou totalmente ignorada. Ou, como mostra um artigo de Motley Fool de 2019, o Bitcoin é constantemente contrastado com uma estrutura corporativa:

O problema é o seguinte: comprar um token de criptomoeda (bitcoin ou quase qualquer outra) não dá aos investidores qualquer propriedade na blockchain subjacente. Se a blockchain subjacente de um token cripto se tornar a base para a inovação numa determinada empresa ou dentro de uma indústria, o seu token associado não vai necessariamente beneficiar (e nem os portadores dos tokens) - diz Fool no artigo

Ao comprar bitcoin, não estás a comprar acções de uma empresa, nem detens capitais próprios (como lamenta o excerto); estás a comprar um sistema monetário digital que existe fora do sistema actual. Quando se entende que o Bitcoin é um sistema monetário (e, portanto, intrinsecamente uma reserva de valor, meio de troca e uma unidade de conta), a comparação com uma empresa é tão anátema com o design do Bitcoin como é ignorante.

Felizmente, esta conversa evoluiu. Pelo menos agora, os detractores um pouco mais educados sabem que o Bitcoin não é "propriedade" de ninguém e nenhuma empresa tem controlo sobre ele. Alterando a sua posição, muitos argumentam agora que os mineiros têm de facto o controlo da rede. A centralização da mineração na China é motivo de preocupação, mas o que os pontos de vista alarmistas não têm em conta são os complexos mecanismos sociais e técnicos que verificam e equilibram a centralização mineira.

Os investidores detêm as chaves do reino, e como o "NO2X" (uma proposta de duplicar o tamanho dos blocos Bitcoin que foi repudiada pelos utilizadores) nos mostrou, também os operadores dos nós – algo que Satoshi pretendia desde o início.

Blockchain

A próxima reclamação com a cobertura mainstream bitcoin não foi coberta no artigo de Buterin. Em 2013, poucas altcoins existiam, e o boom das ICO's , que o Ethereum de Vitalik iria ironicamente detonar, estava a poucos anos de distância.

Mas na ressaca da histeria do mercado de 2017, à medida que a banha da cobra e as promessas utópicas fluíam como leite azedo das equipas de marketing de uma nova classe de cripto-charlatões, a ideia de que a verdadeira inovação é a "blockchain, não o Bitcoin" instalou-se nas mentes de muitos dos que seguem a indústria das criptomoedas com interesse marginal.

"Para responder porque é que o Bitcoin se tornou tão grande", apontou um colunista do Guardian em 2018, "precisamos de separar a utilidade da tecnologia subjacente chamada 'blockchain' da mania das pessoas que transformam o Bitcoin numa grande lotaria idiota. Blockchain é simplesmente uma invenção de software elegante (que é de código aberto e livre para qualquer pessoa usar), enquanto o Bitcoin é apenas uma maneira bem conhecida de usá-la."

Imagina por um momento que as pessoas tinham dito que o TCP/IP é apenas "uma forma bem conhecida de usá-lo" e que a verdadeira inovação era a internet, que deve ser cooptada para criar uma versão privada e supervisionada da original. Isso foi feito: o resultado foi a intranet, uma versão privada da internet que é usada principalmente para funções privadas para empresas ou outras organizações hoje em dia.

De uma forma simples, o TCP/IP é o principal protocolo de envio e recebimento de dados na internet. Por mais que duas máquinas estejam conectadas à mesma rede, se não "falarem" a mesma língua, não há como estabelecer uma comunicação. Então, o TCP/IP é uma espécie de idioma que permite às aplicações conversarem entre si.

Hack, Hacks, Hackado

De todas as observações de Buterin em 2013, nenhuma soa tão dolorosamente verdadeira hoje como o debate sobre a segurança do Bitcoin.

Existem numerosos artigos que atribuem culpa, erradamente, dos servidores de uma correctora serem comprometidos a uma falha de segurança no software do Bitcoin.

"Para uma tecnologia que é suposto ser hiper segura, na prática, muitas vezes provou... , não ser", um artigo da Recode (Vox) de 2019 afirma com uma confiança arrepiante. "O Bitcoin e outras criptomoedas provaram ser um alvo privilegiado para os hackers, apesar da sua caracterização pelos proponentes como super seguros e inexpugnáveis."

Esta é uma descaracterização flagrante do design do Bitcoin. E mesmo que o autor mais tarde distinga entre a blockchain do Bitcoin e a própria segurança da Binance  (com o hack da Binance de 2019 como tema oportuno da cobertura), a abertura sugere que o próprio Bitcoin foi pirateado. Para o leitor casual, que pode não passar do título ou do primeiro parágrafo, isso pode ser suficiente para cimentar na sua mente que a estrutura técnica do Bitcoin está cheia de buracos. Na verdade, os trabucos que relatam artigos deste estilo, são as forças que destroem esta segurança diante dos olhos dos leitores, mesmo que este dano seja fictício, os estilhaços são muito reais para os leitores que não sabem melhor.

A eterna bolha prestes a rebentar

Quando os media enquadram hacks de correctoras de bitcoin desta forma, tem o mesmo efeito que quando jornalistas pouco instruídos dissertam sobre as virtudes da tecnologia blockchain ou erradamente reportam o Bitcoin como uma entidade centralizada. A verdade escapa a todos menos aos observadores mais críticos, e os não-Bitcoiners são deixados com as maçãs podres de inverdades (ou, nos piores casos, propaganda), que aceitam como truísmos: Afinal, o Guardian publicou a história!!

Um destes aforismos é a sempre iminente morte do Bitcoin. Não preciso citar nenhum exemplo, pois este fenómeno está gravado na consciência de qualquer Bitcoiner fiel. Se os equívocos sobre a descentralização do Bitcoin e a sua segurança são a nossa pedra no sapato, então este é um pedregulho - está constantemente a puxar-nos para baixo.

Buterin escreveu especificamente sobre um mito em 2011 que o preço de mercado do bitcoin tinha caído para $0,01. A presciência dessa queixa só se tornaria aparente após a corrida meteórica do bitcoin para os $20.000. Desde então, o número de publicações que proclamam a morte do Bitcoin parece multiplicar-se. Como uma praga de cigarras, a morte zumbe e agita-se com um tom pessimista.

Com a dificuldade em ultrapassar o máximo de todos os tempos de $20.000, provavelmente continuaremos a ouvir o anunciar incessante destes velórios. Os jornalistas tradicionais tendem a pensar que as asas de Ícarus dissolveram-se e o rapaz está agora morto. Ignoram o bitcoin estar a estabelecer máximos locais, pelo que acreditam que está efectivamente morto ou — como o Nathaniel Popper do New York Times colocou em mais um artigo que exalta a capacidade do Bitcoin de financiar actividade criminosa – que a bitcoin "perdeu a força".

Mesmo que o bitcoin atinja máximos locais — e à medida que empresas como a Blockstream, Lightning Labs e outros continuam a impulsionar importantes desenvolvimentos protocolares — os relatos da morte prematura do Bitcoin continuam.

Narrativas sensacionalistas

Outro equívoco decorre da utilidade do Bitcoin e da sua promoção como "dinheiro electrónico".

Os detractores referem frequentemente que ninguém está a usar o bitcoin como meio de troca e que poucos retalhistas a aceitam. Uma fonte de teoria e pensamento online está a remodelar as nossas percepções do Bitcoin. Não é apenas uma moeda, mas todo um sistema monetário. Não é só dinheiro, mas também ouro digital.

Tal como o dom da internet se tornou muito mais do que enviar mensagens, o Bitcoin evoluiu para mais do que uma moeda — ou melhor, a nossa percepção dele evoluiu. A narrativa do ouro, é claro, ainda é subjectiva. Muitas pessoas vêem o ouro como altamente especulativo e de pouca utilidade, por isso vender-lhes a noção de que o Bitcoin é ouro digital — e por extensão, valioso - será ainda mais difícil de conseguir e provavelmente levará alguns anos a cimentar. Ainda assim, considerar o bitcoin como inútil porque não se pode comprar café com ele é uma visão absurda e míope.

Até porque o bitcoin provou a sua utilidade como uma forma de moeda sem necessidade de permissão e resistente à censura. Estas são as principais características do Bitcoin, e como Nic Carter observa com perspicácia em "Uma Revolução Mais Pacífica", é disso que se trata o Bitcoin: toda a utilidade e importância do Bitcoin, todo o seu apelo e toda a sua potência estão enraizados na função primária de ser um sistema monetário paralelo e existente para minar o estado.

Por isso, tantos jornalistas, como evidenciado pela objecção final de Buterin no artigo de 2013 que persiste até agora, se fixam na utilidade do bitcoin em mercados ilícitos. De facto, o Silk Road catapultou o bitcoin e seu preço para uma importância inédita em 2010 e 2011. O bitcoin é, antes de tudo, útil para casos extremos como esse, sectores da economia que são ilegais e não podem operar sem um meio de troca sem permissão e pseudónimo.

Esses são também os casos de uso mais interessantes para o Bitcoin. Para muitos jornalistas, eles são os mais sensacionais e obscenos, e por isso fazem títulos de notícia na esperança de gerar cliques num sector que vive ou morre no tráfego do site e na colocação de SEO. Talvez possamos voltar a dar alguma compreensão a estes jornalistas, muitos deles estão a cobrir o Bitcoin numa base ad hoc sobre os caprichos dos seus editores.

Mas a insistência comum de que o Bitcoin só é bom para o terrorismo, drogas e outras actividades ilícitas é tragicamente exagerada. Menos de 1% das transacções de Bitcoin podem ser atribuídas a actividade ilícita, de acordo com pesquisas da empresa de análise blockchain Elliptic. Ainda assim, histórias de troca de hacks, ransomware e mercados de droga têm uma representação desmesurada nos meios de comunicação tradicionais.

Mais uma vez, talvez possamos atribuir esta a uma era de falta de incentivos nos meios de comunicação online, onde o sensacionalismo domina tanto a atenção como o conteúdo. Do seu púlpito rufia, estes pasquins ameaçam e provocam os proponentes do Bitcoin e forçam os seus leitores aos seus pontos de vista tendenciosos.

Mas, mesmo assim, parece que estatísticas como a acima devem ser provas suficientemente claras para suprimir esta cobertura; ou, pelo menos, os jornalistas poderiam incluir as transacções ilícitas que impulsionam a adopção de Bitcoin em países asfixiados pelo despotismo ou sanções internacionais, como o Irão e a Venezuela.

Outra estatística muitas vezes ignorada é que mais de 70% da mineração de bitcoin é proveniente de energias renováveis. Em 2017, o mundo parece ter despertado para o compromisso do Proof-of-Work: mais actividade na rede é igual a mais energia gasta. Isto levou ao cliché (agora uma espécie de piada interna entre Bitcoiners) de que o Bitcoin vai ferver os oceanos.

Sim, o Bitcoin usa muita energia, da mesma forma que o automóvel gasta mais energia que o cavalo, ou o frigorífico gasta mais que um balde de gelo, ou uma máquina de lavar gasta mais energia que o trabalho de lavar à mão.

Dificilmente. Não só a grande maioria dos bitcoins são minad0s com energia renovável, como consome menos kWh anualmente do que as luzes de Natal ou todos os dispositivos em stand-by que funcionam anualmente em famílias americanas - para não falar na pegada de carbono que é muito menos do que a das indústrias bancárias e financeiras globais.

Mais uma vez, vemos uma narrativa sensacionalista apregoada sem grande consideração por argumentos opostos ou mesmo provas concretas.

O futuro dos mal-entendidos no Bitcoin

Agora, a literacia sobre Bitcoin de alguns jornalistas melhorou desde que Buterin cobriu estes equívocos pela primeira vez em 2013. As características do Bitcoin, como o limite de 21 milhões, a sua arquitectura descentralizada e até da Rede Relâmpago, estão a começar a afirmar-se. Mas mesmo assim, abundam as concepções erradas, algumas das quais, como evidenciado neste artigo, são quase tão antigas como o próprio Bitcoin.

Relatórios pouco instruídos sobre Bitcoin eventualmente deram lugar a meios de comunicação específicos sobre Bitcoin, dos quais este blog faz parte. Até que os meios de comunicação se familiarizem mais profundamente com o Bitcoin, estaremos por perto para afastar o FUD (Fear Uncertainty and Doubt - Medo Incerteza e Dúvida) e corrigir os conceitos equivocados.

Alguns, como com as suas percepções de ouro, podem nunca chegar a ver o valor que nós vemos. Ou, se o fizerem, podem sucumbir relutantemente aos tempos de mudança, como a velha guarda fez com o advento da internet.

Independentemente do cenário, o Bitcoin precisa de uma voz para corrigir as falácias pregadas pelo mainstream. Então, estaremos aqui, tal como o Bitcoin.